A 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) absolveu, por unanimidade, Paulo Alberto da Silva Costa, condenado por roubo com base apenas em um reconhecimento fotográfico irregular. O julgamento, noticiado pelo STJ e por veículos especializados, reforça um recado que a Corte vem repetindo: prova de reconhecimento feita fora do rito do artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP) é inválida para sustentar condenação.

O relator do caso, ministro Rogerio Schietti Cruz, foi direto ao ponto. Para ele, a persistência de condenações fundadas em reconhecimentos falhos é uma “irresponsabilidade consciente”. “Não estamos lidando com papéis, estamos mantendo na prisão pessoas inocentes”, afirmou, ao lembrar que a jurisprudência da própria 3ª Seção do STJ já havia fixado tese clara sobre o tema.

O caso Paulo Alberto: do Facebook ao banco dos réus

Paulo Alberto, homem negro e morador da Baixada Fluminense, tornou-se símbolo da chamada “violência processual sistêmica”. Em diversos processos, foi apontado como autor de roubos a partir de reconhecimentos pessoais e fotográficos realizados em desacordo com a lei — muitas vezes a partir de uma única foto, retirada de redes sociais, sem formação de grupo de semelhantes e sem qualquer outra prova independente.

No processo agora analisado, a única base da acusação era um reconhecimento fotográfico extraído do Facebook, no modelo conhecido como show up, quando a vítima é confrontada com uma única imagem. Não houve alinhamento com pessoas de características semelhantes, nem registro detalhado de como o ato foi conduzido. Mesmo assim, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro manteve a condenação em segundo grau.

Ao julgar o recurso especial, a 6ª Turma do STJ reafirmou a tese já consolidada no Tema 1.258: reconhecimentos pessoais ou fotográficos realizados em desacordo com o artigo 226 do CPP são inválidos e não podem servir, sozinhos, como prova de autoria. Sem qualquer outro elemento a corroborar a narrativa da vítima, a consequência jurídica é a absolvição do acusado.

Uma virada jurisprudencial em reconhecimento de pessoas

O julgamento de Paulo Alberto não surgiu do nada. Desde 2020, quando a Corte passou a analisar em profundidade a ciência por trás do reconhecimento de pessoas, o STJ vem promovendo uma verdadeira virada de chave na forma como o sistema de Justiça deve lidar com esse tipo de prova.

Em habeas corpus paradigmáticos, como o HC 598.886 e o HC 712.781, os ministros abandonaram a ideia de que o artigo 226 do CPP traz apenas “recomendações” e passaram a afirmar sua natureza obrigatória. A partir daí, decisões em série começaram a anular reconhecimentos feitos com base em álbuns de suspeitos, imagens de redes sociais e descrições genéricas que não resistem a uma análise minimamente rigorosa.

Em 2024 e 2025, essa mudança se consolidou. Pesquisa interna do STJ mostrou resistência de juízes e tribunais em aplicar corretamente o precedente, o que levou a sucessivas anulações de reconhecimentos feitos a partir de fotos antigas, imagens de baixa qualidade e relatos contraditórios sobre roupas e características físicas. Em agosto deste ano, a 3ª Seção, ao julgar recurso repetitivo, fixou teses definitivas sobre o tema, alinhadas às diretrizes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para reconhecimento de pessoas.

Na prática, o recado é simples: reconhecimento é prova de alta complexidade psicológica e deve ser encarado como tal. Exige procedimento cuidadoso, registro minucioso e, sobretudo, confirmação por outros elementos probatórios. Quando isso não acontece, o sistema de Justiça corre o risco de transformar vítimas em algozes — e inocentes em estatística carcerária.

Outros sinais: autodefesa, imparcialidade e execução penal

A decisão favorável a Paulo Alberto se soma a outros movimentos recentes do STJ na área penal. Na semana anterior, a 3ª Seção anulou uma condenação em revisão criminal porque o réu jamais havia sido interrogado em juízo, reconhecendo violação ao direito de autodefesa. Em outro julgamento, a mesma 6ª Turma declarou nula uma audiência em que a juíza de primeiro grau assumiu postura ativa demais, conduzindo respostas de testemunhas e rompendo a neutralidade exigida pelo sistema acusatório.

Também na execução penal, a Corte vem calibrando limites. Em repetitivo, a 3ª Seção autorizou a chamada regressão cautelar de regime — transferência provisória do apenado para regime mais rigoroso — sem oitiva prévia, desde que a decisão seja fundamentada e limitada à apuração da falta. A Defensoria Pública alerta para o risco de banalização dessa medida, caso a exigência de fundamentação idônea não seja levada a sério.

Em conjunto, esses julgados revelam uma pauta de fundo: controlar a prova, reforçar o devido processo e impedir que atalhos processuais sirvam de atalho para condenações frágeis.

Reconhecimento, raça e desigualdade

Pesquisas acadêmicas e relatórios produzidos por defensorias públicas e organizações civis mostram que os erros de reconhecimento recaem, de forma desproporcional, sobre homens negros, jovens e moradores de periferia. São pessoas que, em geral, têm menos acesso a defesa técnica, circulam em espaços marcados por abordagens policiais constantes e se tornam alvos preferenciais de investigações baseadas em descrições genéricas.

O caso de Paulo Alberto, que chegou a ser apontado como autor de diversos crimes em sequência, ilustra como uma foto de baixa qualidade, associada a um sentimento de medo da vítima, pode desencadear uma série de acusações em cascata. Quando o sistema falha em filtrar essas provas frágeis, o erro deixa de ser individual e passa a ser estrutural.

Ao falar em “irresponsabilidade consciente”, o ministro Schietti coloca o dedo nessa ferida. Não se trata apenas de desconhecimento técnico, mas de uma escolha institucional: manter o piloto automático ou assumir, de fato, os riscos de mandar alguém para a prisão com base em uma prova sabidamente falível.

O que muda, na prática, para a advocacia criminal

Para quem atua na defesa penal, a linha firmada pelo STJ cria um roteiro concreto de atuação. Advogados e advogadas passam a ter respaldo jurisprudencial sólido para:

  • impugnar reconhecimentos pessoais e fotográficos feitos sem observância do artigo 226 do CPP;
  • exigir o registro detalhado do procedimento (como foi feita a fila de pessoas, quais instruções foram dadas, quanto tempo durou o ato);
  • demonstrar, em alegações finais e recursos, a ausência de outras provas de autoria capazes de corroborar a narrativa da vítima;
  • questionar condenações baseadas em “memória reconstruída” anos depois dos fatos, sem lastro em elementos objetivos.

Ao mesmo tempo, a defesa precisa lidar com resistências locais — de delegacias que ainda utilizam álbuns de suspeitos sem controle, de juízes que relativizam a tese do STJ e de tribunais que tratam violações ao artigo 226 como meras irregularidades formais.

Dados do julgado (para pesquisa do inteiro teor)

Processo: REsp 2.204.950, 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Relator: ministro Rogerio Schietti Cruz.
Julgamento: 11 de novembro de 2025, com acórdão disponível para consulta no sistema de jurisprudência do STJ.
Tema relacionado: Tema 1.258 (reconhecimento pessoal em desacordo com o artigo 226 do CPP).

Serviço — Liga Pela Justiça

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